Sexta-feira, 13 de Junho de 2008

 

 

 

 

 

 

 

 

 Poema de Cinza

 

 

À memória de Fernando Pessoa

 

 

Se eu pudesse fazer com que viesses

Todos os dias, como antigamente,

Falar-me nessa lúcida visão –

Estranha, sensualíssima, mordente;

Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,

Meu pobre e grande e genial artista,

O que tem sido a vida - esta boémia

Coberta de farrapos e de estrelas,

Tristíssima, pedante, e contrafeita,

Desde que estes meus olhos numa névoa

De lágrimas te viram num caixão;

Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,

Voltávamos à mesma: tu, lá onde

Os astros e as divinas madrugadas

Noivam na luz eterna de um sorriso;

E eu, por aqui, vadio de descrença,

Tirando o meu chapéu aos homens de juízo…

Isto por cá vai indo como dantes;

O mesmo arremelgado idiotismo

Nuns Senhores que tu já conhecias

- Autênticos patifes bem falantes…

E a mesma intriga; as horas, os minutos,

As noites sempre iguais, os mesmos dias,

Tudo igual! Acordando e adormecendo

Na mesma cor, do mesmo lado, sempre

O mesmo ar e em tudo a mesma posição

De condenados, hirtos a viver

Sem estímulos, sem fé, sem convicção…

 

Poetas, escutai-me: transformemos

A nossa natural angústia de pensar –

Num cântico de sonho!, e junto dele,

Do camarado [Sic] raro que lembramos

Fiquemos uns momentos a cantar!

 

António Botto

 

 

Antologia de poemas portugueses modernos por Fernando Pessoa e António Botto. Coimbra: Nobel, 1944. P.189-190.

 

 

Ver lista de obras existentes na BMF [PDF]  38 KB

 

 



publicado por BMFunchal às 22:26
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