Poema de Cinza
À memória de Fernando Pessoa
Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença,
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo…
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns Senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes…
E a mesma intriga; as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos a viver
Sem estímulos, sem fé, sem convicção…
Poetas, escutai-me: transformemos
A nossa natural angústia de pensar –
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarado [Sic] raro que lembramos
Fiquemos uns momentos a cantar!
António Botto
Antologia de poemas portugueses modernos por Fernando Pessoa e António Botto. Coimbra: Nobel, 1944. P.189-190.
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