Terça-feira, 20 de Março de 2007

(memória, montagem)

 

      O poema é um animal;

      nenhum poema se destina ao leitor;

      ou, como um quadro, assume o poder dos feitiços,

objectos mágicos ou instrumentos de esconjurar os es –

píritos, ou a emoção, ou o inconsciente, guardando o

homem de uma oculta dependência de tudo;

      porque se vive dos lucros da superstição;

      e é forçoso existir a natureza, outorgada às nossas violações;

      ou que as regras de organização do poema são as

mesma da natureza, mas os elementos com que o poe-

ma se organiza não estão na natureza;

      e o poema não transcreve o mundo, mas é o rival do

      mundo.

      São casas de Aristóteles, Benjamim, Picasso, Huido-

Bro, Malraux.

      Casas por onde se entra e de onde se sai, por por-

tas travessas ou janelas, por telhados e escadas derra-

deiras, pela frente, abrindo túneis nas caves, escreven-

do torto em linhas direitas, ateando fogos, pelas trasei-       Biografia

ras.

      Ou ficando imóvel no meio dos móveis, um vulto na

travessia dos quartos aglomerados.

(…)

      Ou então o poema vitaliza a vida se a toca nalguns

pontos.

      O poema gera uma vida nesses pontos tocados.

      É um colar de pérolas, as pérolas todas juntas, cir-

cuitos vibrante que se pode sentir à roda do pescoço com

uma viveza autómota de bicho.

(…)

      Qualquer poema é um filme, e o único elemento que

importa é o tempo, e o espaço é a metáfora do tempo, e

o que se narra é a ressurreição do instante exactamente

anterior à morte, a fulgurante agonia de um nervo que

irrompe do poema e faz saltar a vida dentro da massa

irreal do mundo.

(…)

 

 

HELDER, HERBERTO – Photomaton & Vox. 3ª Ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 1995.  P.145-148. ISBN 972-37-0124-3.



publicado por BMFunchal às 23:18
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