(memória, montagem)
O poema é um animal;
nenhum poema se destina ao leitor;
ou, como um quadro, assume o poder dos feitiços,
objectos mágicos ou instrumentos de esconjurar os es –
píritos, ou a emoção, ou o inconsciente, guardando o
homem de uma oculta dependência de tudo;
porque se vive dos lucros da superstição;
e é forçoso existir a natureza, outorgada às nossas violações;
ou que as regras de organização do poema são as
mesma da natureza, mas os elementos com que o poe-
ma se organiza não estão na natureza;
e o poema não transcreve o mundo, mas é o rival do
mundo.
São casas de Aristóteles, Benjamim, Picasso, Huido-
Bro, Malraux.
Casas por onde se entra e de onde se sai, por por-
tas travessas ou janelas, por telhados e escadas derra-
deiras, pela frente, abrindo túneis nas caves, escreven-
do torto em linhas direitas, ateando fogos, pelas trasei- Biografia
ras.
Ou ficando imóvel no meio dos móveis, um vulto na
travessia dos quartos aglomerados.
(…)
Ou então o poema vitaliza a vida se a toca nalguns
pontos.
O poema gera uma vida nesses pontos tocados.
É um colar de pérolas, as pérolas todas juntas, cir-
cuitos vibrante que se pode sentir à roda do pescoço com
uma viveza autómota de bicho.
(…)
Qualquer poema é um filme, e o único elemento que
importa é o tempo, e o espaço é a metáfora do tempo, e
o que se narra é a ressurreição do instante exactamente
anterior à morte, a fulgurante agonia de um nervo que
irrompe do poema e faz saltar a vida dentro da massa
irreal do mundo.
(…)
HELDER, HERBERTO – Photomaton & Vox. 3ª Ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 1995. P.145-148. ISBN 972-37-0124-3.