Quinta-feira, 04 de Outubro de 2007

Funchal, Bela Vista Hotel – 4 d’Abril

Maria leu-te a minha carta. E dizes-me que ficaste muito satisfeita porque dela depreendeste que a linda Madeira estava ainda como há anos a deixaste. O que escrevia eu a Maria? Lembro-me que celebrei a nossa radiosa paisagem, o perfume, a frescura das nossas flores, a mansidão dos nossos costumes, a nossa confortável indiferença em matéria política e talvez aquele superior não te rales, deixa andar, corra o marfim…

Se acrescentei que, nesta terra, nada tinha mudado, que nos conservávamos livre dos vandalismos do progresso…Ah! Margarida, não foi então da Madeira que eu escrevi, mas daquele doirado país da Ilusão, onde, por vezes, habito. Porque infelizmente está bastante mudada, bastante…adiantada, a nossa ilha. Quando aqui vieste, já as redes, as pitorescas redes, que tanto te divertiam, andavam um pouco fora de moda, mas eram ainda os confortáveis, simpáticos, amorosos (como lhe chamavas) carrinhos de bois, que ao som daquela arrastada cantilena: - Cá para mim, boisinho para mim! Cá para mim Muriano! Para mim Bonito! (Bonaito) – nos levavam aos jantares da condessa de Ribeiro Leal, aos bridges de Mrs Blandy…Ia-se em passo pachorrento. Muriano e Bonito sempre ignoraram a odiosa azafama, a vulgar pressa. E, antes de uma pessoa se levantar nas doidas valsas ou nos febris sans-atous, tinha tempo de sobra para dormir uma dessas deliciosas sonecas, tão reparadoras do sistema nervoso.

Agora há os banais automóveis e os side-cars horrendos que atroam a cidade com os seus esganiçados assobios. Não se dobra uma esquina sem perigo de vida. Não se atravessa a dantes tão quieta, silenciosa e…de todo o repouso ruas das Aranhas sem o Credo na boca!

As minhas amigas, muito estrangeiradas, muito modernas, adoptaram logo, com entusiasmo, este novo meio de locomoção…Mary B. – aquela loira tão fina, tão bonita, que achavas parecida com o retrato da duquesa de Devonshire e fazia o teu encanto, quando passava no seu carro, negligentemente encostada às almofadas de cretone azul pervinca, cor dos seus olhos – tornou-se uma…um desembaraçado, emérito chauffeur. Vestida de sarja escura, o cabelo escondido sob o véu cinzento, enormes luvas de carmuça, deformando-lhe as esguias mãos, vemo-la constantemente no árduo trabalho de consertar um pneumático…

Do automóvel surgiram as primeiras discussões no simpático ménage dos J. Marido e mulher guiam. O marido pretende dar conselhos à mulher, que, por sua vez, já se vê, dá sota aos maridos. Daí um constante:"dize tu, direi eu…"

Daisy – a inglesa com um ar muito garoto, muito arrapazado, que usava monóculo, lembras-te? – está inconsolável. Por causa da sua vista curta – e nós a pensarmos que o monóculo era de vidraça, muitos juízos temerários se fazem neste mundo! – recusaram-lhe a carta de chauffeur…Isn’t it dreadful?

- Então já não se vê um carrinho, um amoroso carrinho?!...

Ainda se vê, mas…ai deles! Foi também vítima dessa doença da pressa, que, após ter invadido o mundo chegou á calma Madeira. Já ninguém quer andar…a passo de boi. Duas possantes mulas substituíram o doce Muriano, o manso Bonito…

Passando a outra espécie de…melhoramentos: Não esqueceste, decerto, aquele velho passeio da Constituição, onde se festejavam com música e iluminações de vidrinhos de cores, todas as nossas datas gloriosas e á sombra de cujas lindas, frondosas árvores, era moda sentarem-se as elegantes do bom velho tempo…Pois o fino gosto dos nossos governantes não pôde suportar velharia tão inútil, incómoda, atravancadora e, ainda por cima, atentatória do regime …Árvores que ouviram o hino da carta, onde, porventura tremularam bandeiras azuis e brancas, são árvores suspeitas, criminosas. E as grandes figueiras da Índia e as nobres magnólias tiveram o destino de tudo o que, no nosso país, é grande e nobre…Caíram assassinadas. Defronte da velha Sé escancara-se agora uma larga avenida, género modernismo, género grande cidade! – Estás a ver como diz bem com o resto… - A pobre igreja tem o ar arrepiado, envergonhado de alguém que os malfeitores deixaram nu em plena rua...

Outras coisas se fizeram, outras mais extraordinárias ainda se farão…A colossal avenida que, por ora, graças a Deus, chega apenas ao Jardim Novo, deve prolongar-se triunfalmente por S. Lázaro fora… Grandiosos são os projectos!...Oh, e quando se trata de embelezar, os nossos governantes não olham a despesas! Do antigo Funchal, dentro em pouco, não restará uma pedra. Moinhos das Mercês, Convento das Capuchas, beco das Algas, que a doce capelinha guardava e protegia, beco das Cruzes, sombrio entre os altos muros floridos de bougainville, velhas quintas, velhas, discretas casas, cantos misteriosos onde morava o silêncio, quebrado apenas pelo chorar das fontes, tudo enfim, que conservava ainda um pouco de pitoresco, um pouco de poesia, o que emprestava ao banal presente o mágico encanto do passado, durará apenas, no domínio da nossa saudade, o breve tempo que nos durará.

 

 

Luzia - Cartas do Campo e da Cidade. Lisboa: Portugália, 1923. p.157-160

 



publicado por BMFunchal às 21:36
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